Xavier pousou o embrulho de papel pardo aos pés da cama. As mãos esguias tremiam ao desembrulhá-lo. Estacou, observando os resquícios de sangue que permeavam a ferrugem. Pegou-lhe e acariciou a gravação na lâmina: No me saques sin rason. No me embaienes sin honor.”

Tombou o rosto e, de olhos negros fechados, murmurou as palavras com a cadência natural da língua materna. O som tornou-se em algo espesso que pressionou o seu metro e oitenta e cinco de altura e comprimiu os oitenta quilos de espadachim. Exalou, expelindo a pressão, e um intenso chamamento guiou-lhe o olhar pela divisão.

Uma ténue luz azul pulsava, visível através das minúsculas frestas que ladeavam a porta do que era suposto ser a casa de banho. Avançou pela roçada carpete castanha e murmurou a chave. Um clique soou e Xavier esgueirou-se para dentro da divisão.

Os azulejos brilhavam reflectindo o azul e, no centro, a banheira de cobre assentava em quatro patas em garra. Retirou um pingente do bolso, a medalha de prata cunhada com o brasão familiar, e largou-o dentro do líquido azulado que revolteava no fundo do enorme recipiente. O fluido pulsou uma vez, num intenso clarão, ao toque do objecto sobre a superfície.

Ajoelhou-se perante a banheira e inclinou a cabeça sobre a lâmina que assentava nas palmas das mãos. Recitou as palavras que lhe permitiriam Ver. Um novo clarão invadiu o espaço. Com gestos reverentes baixou o sabre sobre o líquido que, formando pequena vagas, se afastou do objecto por uns instantes, engolindo-o de seguida.

Debruçou-se sobre o enorme recipiente de cobre e esperou. Observou o líquido azul perder o brilho, apagando, tornando-se negro como os seus olhos e sapiente para aqueles que eram da sua linhagem. Esperou até o fundo da banheira ser um espelho negro, que primeiro ocultou e depois mostrou, para os que podiam Ver. Esperou até poder beber da fonte de conhecimento que se revelava no negrume.

Imagens de sangue e morte percorreram o negrume. Pescoços cortados, membros rasgados e estômagos perfurados. Sob o toque de centenas de punhos, o sabre vibrava na ânsia de mais um golpe, mais uma morte e, por fim, Xavier viu aquilo que procurava. O rosto do traidor que a usurpara e que deixara um trilho de corpos inocentes que seriam vingados.

Enfiou as mãos no líquido agora vermelho, como se a cor fosse mais uma prova da carnificina, e retirou a lâmina dos seus confins líquidos. Segurou-a nas palmas das mãos apreciando o desaparecimento da ferrugem ensanguentada que a tingira e murmurou, num espanhol perfeito, as palavras que a cobriam No me saques sin rason. No me embaienes sin honor.”, tudo o que fora desrespeitado.

Raios azulados inundaram o espaço, banhando de luz os rachados azulejos brancos, e devolvendo a divisão ao seu usual estado de inércia. Agarrou a medalha de prata que pairava acima da linha de água e devolveu-a ao bolso.

Pela janela do quarto Xavier reconheceu os primeiros raios da aurora que se aproximava. A noite passara num ápice com Xavier absorto pela longa lista de sangue derramado. Quantas vidas destruídas pelas mãos daqueles que usurparam a espada do seu verdadeiro dono… negligentes das regras forjadas na sua lâmina. Em breve, Xavier teria a oportunidade de eliminar aquele que a havia empunhado… laços que precisava cortar, em razão e honra.

O velho relógio de pêndulo anunciou a meia hora, o gongo retinindo pela casa fora, enquanto ele se ajoelhava à frente do sabre. Cerrou os olhos e deixou que os sentidos se fechassem ao mundo. A mente longe da carpete roçada que o acomodava, do estrado elevado onde dormia, do relógio de pêndulo que anunciava o galopar das horas, das várias lâminas embainhadas que cobriam as paredes. Por trás das pálpebras cerradas bailavam imagens de sangue e morte. O passado, o presente, o futuro, tudo convergia na escuridão da sua mente, tudo se alinhava para a nova batalha. Xavier serviria a sua poderosa linhagem. Faria, por fim, o que o sangue e tradição lhe exigiam: Devolver o Sabre a um uso honrado.

O retinir da campainha trouxe-o de volta ao espaço físico. Baixou o rosto sobre a lâmina, em sinal de reverente respeito, levantou-se e alinhou-a com o corpo. Devagar, desceu as escadas para o vestíbulo, ainda na penumbra, quando a campainha voltou a soar.

Os dedos roçavam a maçaneta da porta da rua quando foi ladeado por três presenças. Cercado por sombras dentro da própria casa. Assim começava o reclamar do Sabre que era seu para usar. Assim tinha início a maior luta da sua existência. Empunhá-lo-ia com razão e embainhá-lo-ia com honra. Seu para cuidar, respeitar… e matar.

2º uma herança familiar