O mago levantou-se e com as mãos sacudiu o pó dos joelhos.

– Vossa presidência, decerto que não há qualquer necessidade destas algemas nos meus pulsos, para além de serem incómodas. – Esticou os braços na direção de Julium, deixando à vista as algemas de metal com as pedras brilhantes. – Não podereis ordenar que as retirem? Não causarei qualquer mal, não tenho aqui cristais que possa usar para o que quer que seja.

– Vander, começa o teu discurso. A maneira como vieste até aqui permanecerá a mesma, haja ou não qualquer risco. – A voz, num tom seco, denotava que não tolerava qualquer demora nos seus planos.

Vander encolheu os ombros num jeito de resignação.

– Pois bem vossa excelência, procederei então com o meu discurso.

Para que todos possam entender o contexto que me levou a tomar as decisões que tomei, preciso de recuar no tempo, até há cinco dias atrás, à véspera do ataque.

Fora um dia como todos os outros, sem qualquer aviso de que no dia seguinte um desastre abater-se-ia na nossa cidade. Encontrava-me na Guilda dos Magos, procurava arranjar uma maneira de melhorar os Golems na eficiência com que utilizavam a energia dos cristais que inseríamos nos seus interiores. No meu estúdio, que fica dentro da Guilda, tentara toda a manhã melhorar os circuitos que ligam os vários cristais ou mudar os próprios cristais, sem qualquer sucesso. Até ser interrompido pela entrada de Malku Frit, que segurava uma bandeja com um papel repousado lá.

– Vander, mandaram-me entregar-te este recado. Foi o Mago Mestre Sulaz. Para além disso, decidi trazer a tua refeição, já passam das horas do almoço.

– Ah Malku o que faria eu sem ti? – Malku Frit era o empregado que contratara desde que me tornara um Mago na Guilda. Não gostando de todo de relações servis, impedi Malku desde o primeiro dia de me tratar como um patrão intocável ou divino. Queria-o como um companheiro mais do que um moço de recados como alguns magos faziam.

Levantei-me e dirigi-me à entrada do estúdio onde Malku deixara a comida.

– Deixa-me ver o que diz esse papel – Agarrei o papel e tirei de um dos bolsos do meu manto o meu cristal de direito como Mago, esférico e avermelhado. Pousei esse mesmo cristal no papel e recitei o meu nome, ao que as palavras escritas pela mão do Mago Mestre começaram a aparecer. Enquanto lia o recado, peguei numa maçã e fui trincando-a.

– O que é que querem desta vez? – A pergunta retórica saíra de certa forma distorcida com o processo de mastigar que acontecia na minha boca, mas Malku entendera.

– Não sei Vander, mas será urgente?

– Hmm… Não parece. Só me querem no auditório dos dez Mestres amanhã, pela primeira hora solar. Devem querer que parta em mais algum trabalho para ajudar uma terriola distante. – Pousei o que restava da maçã no tabuleiro que Malku trouxera e fui dirigindo-me uma vez mais ao meu estúdio. – Bem, se assim for, terei de adiantar o meu trabalho aqui. Malku, não me interrompas a não ser que uma nova mensagem dos Magos Mestres chegue.

– Claro Vander, assim farei. – O homem acenou com a cabeça, o máximo de deferência que eu permitia ao meu empregado, e saiu da divisão, deixando para trás o resto da comida que trouxera.

– O resto desse dia não contribui em nada para este caso. – Vander interrompera o seu relato olhando para o presidente.

– E o que é que essa pequena história contribuiu para os aqui presentes?

– Assim verá, caro presidente Julium, mas antes… – Dirigiu-se à plateia central, onde o maior grupo de júris se encontrava. – Quantos de vós sabem como nós, magos, utilizamos a nossa magia? – Olhou para a cara de todos os júris, apenas os cinco nobres levantaram as suas mãos livres. – Pois, tal como pensava.

– Vander Sentralm, não te atrevas a continuar! – Um dos magos júris que se encontrava na plateia exaltou-se, deixando cair um capuz e mostrando uma tatuagem azul nas suas têmporas.

O mago olhou na direção de quem falara.

– Lamento, Mago Mestre Sulaz, mas temo que isso seja de grande importância para o caso. Aliás, já não é segredo algum a maneira como a nossa magia funciona. – Olhou para a cara dos que não levantaram as mãos. – Nós, magos, conseguimos fazer uso da magia que é emitida por todos os seres vivos a partir da essência das suas vidas, mas essa magia é semelhante ao ar, não conseguimos agarrá-lo por mais que tentemos, para isso precisamos destas pequenas coisas… – Levantou as mãos deixando mostrar os cristais das algemas. – Há vários cristais que servem como recetores de magia, permitindo armazenar e utilizar essa magia da maneira que melhor acharmos. E qual a necessidade de contar-vos isto? Para entenderem a razão do que vos irei contar a seguir.

No dia seguinte, reuni-me com os Magos Mestres. Cada um sentado na sua cadeira, formando uma meia-lua, olhavam para o centro onde me encontrava.

– Mago Vander, temos uma tarefa de grande importância – O mago no centro começou a falar. – Em breve a cidade será atacada por um dos Antigos, adormecido por centenas de anos…

– E vossas excelências querem que lidere um ataque? – Interrompi, julgando perceber os desejos dos magos à minha frente.

– Não. Não há maneira de vencer esta criatura. Devias saber pelos teus estudos que os Antigos não deixam a sua essência extravasar, daí serem imortais. Pedimos que fiques na cidade, liderando os golems que criaste e um pequeno grupo de magos, enquanto evacuamos todos os outros e também os aprendizes.

– E quando chega o Antigo, Mago Mestre?

– Está neste momento a caminho da cidade. Não sabemos qual a sua velocidade, mas em breve atacará.

– E os cidadãos? Temos de avisá-los do perigo.

– Terão de se salvar a eles mesmos. Não temos capacidade para salvá-los a eles e aos nossos.

– Então vamos deixá-los morrerem? – A exaltação que sentia subiu pela minha garganta, aumentando o tom de voz.

– Mago Vander, obedece às nossas ordens sem questões. Juraste obedecer aos Magos Mestres e somos nós que assim decidimos.

Fiz uma vénia, como obrigava a cortesia entre magos.

– Assim será Mago Mestre. – E sai do auditório sem esperar por mais que os magos tivessem a dizer.

 

– Malku, vai ter com a tua família, façam as malas e saiam desta cidade. – disse, assim que entrei novamente no estúdio.

– Mas Vander, o que se passa?

Não tive tempo para responder. Assim que o homem acabara a frase, o chão tremera como se a própria terra estivesse a partir-se ao meio. Malku desequilibrara-se e caíra, mas logo que o terramoto parou ajudei-o a levantar-se.

– Acho que já é tarde demais. Os Magos Mestres disseram que iríamos ser atacados por um dos Antigos.

– Um dos Antigos?! – O choque do homem era visível na palidez da sua pele. – Mas seremos todos mortos por ele.

– Por isso digo que vás ter com a tua família e fujam da cidade! Vai, agora! – A ordem que dera surtiu efeito e logo o homem fugia pelas escadas para a rua.

 

Horas passaram-se até voltar a vê-lo. Durante essas horas, todos os golems da cidade tinham sido destruídos. Os cristais mais poderosos não nos ajudaram em nada quando tentámos lutar contra aquele ser semelhante a uma serpente-capelo, do tamanho das muralhas da cidade, que com cada cuspidela do seu veneno ácido destruía a pedra, os golems e os magos azarados que se encontravam no sítio errado à hora errada.

Os dez Magos Mestres tinham sido bem-sucedidos a criar o feitiço para Saltar, transportando-se a si mesmos e aos outros magos e aprendizes. Abandonaram a cidade ao seu destino inevitável de destruição, deixando para trás apenas os vestígios de um pilar de luz causado pela libertação repentina de magia.

Assim que esse pilar de luz aparecera, dei sinal de retirada das muralhas, iniciando o segundo plano de defesa da periferia da Guilda. No entanto, a retirada fora um desastre: enquanto os golems lançavam bolas incandescentes ou geladas, os magos tentavam fugir, atropelando-se uns aos outros, causando mais mortos do que sobreviventes.

Eu fugia já da muralha da cidade, ziguezagueando pelas ruas. Foi nesse percurso que voltei a ver Malku. Agora acompanhado da família, a sua mulher e os dois filhos.

– Malku, o que é que ainda fazes aqui? Eu disse-te para fugires! – A filha de Malku agarrava-se às calças do pai, o rosto marcado pelo rasto das lágrimas. Já o filho estava ao colo da mãe, ambos assustados.

– Não tivemos tempo, Vander. O que fazemos?

– Sigam-me, vamos voltar para a Guilda, a nova linha de defesa será aí. – Acenei com uma mão. Enquanto voltava a correr, sentia a falta de peso na minha bolsa, indicando a pequena quantidade de cristais que tinha para nos defendermos caso algo acontecesse.

Agarrei num dos cristais e foquei-me nas fontes de vida à nossa volta. Além das pessoas, só pequenas ervas libertavam magia, todos os outros animais já tinham fugido. Canalizei um pouco da minha própria vida para o cristal e citei um feitiço de explosão. Atirei o cristal para a rua atrás de nós, explodindo com os edifícios e bloqueando a passagem da criatura.

O que não contei foi que isso alertasse propositadamente a sua atenção. Vimos a cabeça de serpente a olhar na nossa direção, o seu capelo a tapar o sol, criando uma sombra negra por cima de nós. Por sorte, estávamos perto da Guilda. O suficiente para todos conseguirem entrar e fechar os portões, ativando assim o feitiço de protecção.

– Precisamos de arranjar maneira de fugir ou atacar. – Dirigi-me ao primeiro Mago que encontrei, os cortes na sua cara sangravam abundantemente, mas ainda se mantinha em pé. – Tu sabes como é que o feitiço de protecção é alimentado, não podemos ficar aqui indefinidamente, se não morreremos.

– O que sugere, Mago Vander? Os Magos que conseguiram escapar não têm quase cristais nenhuns, os meus já acabaram. – O mago virou a sua bolsa ao contrário, deixando o ar sair.

– Retirem o cristal central da Guilda. Pede ajuda a quem quiseres, mas tira esse cristal de lá e trá-lo para os jardins da torre, rápido! – A última palavra foi acentuada com o som de um relâmpago causado pelo Antigo a embater contra a protecção da Guilda. Ao mesmo tempo senti uma quebra de energia causada pela extração de magia do feitiço. – Não temos muito tempo!

O mago correu para o interior do edifício, chamando vários dos seus colegas para o ajudarem. Olhei em volta, para avaliar a situação. Os magos auxiliavam os médicos que restavam a transportar aqueles que estavam feridos. Um homem gritava, deitado numa maca, uma das pernas sangrava abundantemente, esmagada por uma pedra de um edifício que desmoronara no caminho para a Guilda.

– Venham, temos de vos levar a um lugar seguro. Malku, vai para o meu estúdio e abriguem-se lá.

– Para onde irás, Vander?

– Vamos reunir-nos nos jardins da torre. Lá teremos uma vista desabrigada e poderemos vigiar o Antigo – respondi.

– Vamos sobreviver a isto, Vander? – Olhou para a mulher atrás de si, ocupada a confortar as crianças. – Diz-me a verdade.

– Não te sei dizer Malku. Nunca defrontámos um Antigo. Ele não é atingido pelas nossas magias e não conseguimos roubar-lhe a sua energia. Não temos muito mais tempo. O feitiço de protecção retira energia de tudo o que viva aqui dentro. Se não matarmos aquilo, a nossa própria protecção matar-nos-á a nós.

O olhar de Malku mostrou o seu desalento. Eu ia responder, mas já estava a ser puxado por outros magos que pediam conselhos e relatavam os resultados e baixas dos seus batalhões. – Se precisares de algo saberás onde me encontrarei!

 

Os restantes magos não feridos reuniram-se. Éramos apenas nove e, mesmo não estando feridos, o cansaço que a maior parte tinha era um ferimento interno tão preocupante como os externos. Não durariam muito mais se o Antigo mantivesse as suas investidas. Haviam trazido o cristal para a torre e agora encontrava-se no centro do círculo. Com dois metros de altura apontava para os céus como uma pirâmide.

– Vamos precisar de mais do que as nossas forças para conseguirmos algum efeito – disse um dos magos. – Olha para nós, Vander, somos uns farrapos do início da batalha.

– Criem o elo e logo veremos o que podemos fazer. – A ordem foi ríspida, fazendo com que, sem qualquer objeção, os magos fechassem os olhos e começaram a ligar-se. Senti o feixe de magia que era transmitido de mago para mago, até chegar a mim. Mas o que poderia ser um rio com uma corrente imensa em dias normais, era agora um riacho que não transportava grande força. Percebi que eles tinham razão, não conseguiríamos fazer muito com o que tínhamos em mão.

A alternativa surgiu atrás de mim.

– Vander – Malku chamava-me, segurando o filho por uma mão. Dissera apenas o meu nome, mas a sua voz denunciava um propósito. – Salva o meu filho, por favor.

Antes que alguém pudesse impedir-me, puxei a vida de Malku. Era um homem novo e, como tal, o riacho de magia que corria entre os magos tornou-se num rio transbordante. O corpo do homem caiu já sem vida e a criança ao pé de si começou a chamar pelo pai. Os meus companheiros olharam para mim, chocados com o que fizera.

– Não há mais nenhuma alternativa. Vocês viram que ele implorou que salvasse o seu filho em troca da vida dele! Se não fizermos isto, morreremos todos. O sacrífico da minoria pelo bem da maioria, foi isso que vos ensinaram! Foquem-se na magia! – Apesar de estarem assustados, fizeram o que ordenava.

Canalizámos a magia para o cristal.

– Não é o suficiente. – Dissera aquilo ao mesmo tempo que os outros tomavam noção. Apesar da magia de uma vida estar ali contida, não era o suficiente, talvez se Malku tivesse sido mais novo.

O choro da criança de quatro anos chegava aos nossos ouvidos já como gritos desesperados que tentavam acordar o pai. E, tão depressa começara, como de um momento para o outro se calara. Os magos olharam naquela direção, sem perceberem o súbito silêncio. Só segundos depois tomaram noção do que eu fizera.

Num jorro ininterrupto, sentiram a vida da criança que eu extraíra do corpo.  Sabia que, por aquilo que fizera, seria mais tarde punido. Roubar a vida de um humano era um ato de blasfémia e traição ao que a Guilda representava. Mesmo que uma dessas vidas tivesse sido dada de forma consentida, para salvar a sua família.

– O que fizeste, Vander?! – Tryst, o mago mais próximo de mim em relação a poder falava, chocado com os meus actos. – Vais condenar-nos a todos! Matas-te duas pessoas!

– Não é o melhor tempo para falar disso. Eu arcarei com as consequências se conseguirmos sair daqui com vida! – Voltei a cara para os outros magos. – Agora, como vosso superior, ordeno-vos que controlem o fluxo! As vidas deles não serão desperdiçadas!

Era quase impossível controlar o fluxo. A magia estava tão concentrada num único cristal que conseguíamos ver pequenos laivos de fumo a sair e a escorregar para o chão onde depressa desaparecia. Com tamanha concentração de energia, o cristal não aguentaria muito tempo e começaria a dispersar a magia. Ou então os magos que a tentavam controlar não aguentariam e, se um falhasse, a cadeia seria rompida levando a magia a explodir em todas as direções.

– Só vamos ter uma oportunidade para fazer isto! – Para realçar as minhas palavras, o Antigo embateu uma vez mais na protecção. – Vamos criar um feitiço de ataque em flecha, entenderam-me?

A resposta veio em uníssono.

– Sim, Mago Vander!

A avalanche de magia informe modificou-se, assumindo a vontade de todos os magos que a rodeavam. Dentro do cristal via-se agora o fumo a rodopiar numa faixa cada vez mais fina, até formar uma flecha que brilhava de forma incandescente.

A fase seguinte seria controlada apenas por mim. Dar forma à magia é algo que os magos conseguem fazer numa mente ligada. Guiá-la num único sentido fora do cristal, torna-se impossível para dois magos em conjunto.

Concentrei-me num ponto do ventre do Antigo que continuava a embater na protecção da Guilda. De forma suave, toquei com a minha mente nos fios de magia que saíam dos outros magos, indicando-lhes que estava pronto.

– Agora! – ordenei.

Todos os magos libertaram a energia que retinham. Como uma fisga, os fios de magia chicotearam para o cristal, agarrando a flecha, e levando-a para o único fio ainda ligado ao cristal, o meu. O tempo estendeu-se quando vi a flecha na minha direção, centímetros antes de me tocar, atirei-a para o Antigo.

A flecha voou a uma velocidade tremenda. Almejava acertar-lhe no crânio, onde poderia ter um maior efeito. Mas, a segundos do ataque o atingir, o Antigo levantou a cabeça num rugido e a seta acertou-lhe no ventre. Uma explosão atirou os magos ainda vivos para o chão com a sua onda de impacto. Conseguira criar um escudo que me protegera, e fui o primeiro a ver o efeito da nossa magia.

Um pequeno furo negro sobressaía do ventre claro do Antigo. Um riacho de sangue azul escorria pelo corpo até ao chão. No entanto, não parecia ser um ferimento mortal.

– Não funcionou! Mataste duas pessoas para um feitiço que não fez mais do que uma picada a um Antigo! – O mesmo mago que falara antes gritava a plenos pulmões na minha direção. – Podíamos ter poupado a nossa magia para o feitiço de protecção e agora nada! Vamos morrer todos!

– Não Tryst, não vamos. Olha com atenção.

O Antigo continuava furioso, embatendo no cada vez mais fraco portão. Mas, de onde saía o seu sangue, os magos conseguiam também ver a essência da vida a esvair-se.

– Temos a oportunidade de matar este ser roubando a magia. Rápido! Levantem-se. Reúnam-se num círculo, outra vez.

Alguns dos magos não se levantaram, o esforço do último feitiço, aliado ao embate do Antigo na protecção, esvaíra os seus corpos de vida. Dos nove que reuniram o círculo, restávamos apenas seis. Mas todos achávamos que seria o suficiente para matar aquele ser.

Porém, quando o Antigo sentiu a vida a ser puxada, não atacou com maior ferocidade. Em vez disso, rastejou para longe da cidade, surpreso pela sua súbita fraqueza. Em breves minutos não passava de uma linha no horizonte. Uma ameaça agora extinta.

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