O martelo de madeira bateu inúmeras vezes na tábua do mesmo material, fazendo o som oco repercutir-se pelo átrio.

– Silêncio! Silêncio! – ordenou o homem de vestes negras, levantando-se da sua cadeira.

O barulho foi diminuindo até só restar um burburinho vindo de duas pessoas ao longe que, apercebendo-se do silêncio à volta, terminaram também a sua conversa.

– Estamos aqui reunidos, neste dia 23 do mês de Saturno do ano de 357 após o Cataclismo, para trazer a justiça ao mundo. – O homem das vestes falava abertamente para toda a sala. – O meu nome é Julium Sagn e presidirei este julgamento. Prometo agir perante o único Deus com a verdade e justiça do mundo, sem que esta seja quebrada. Serei o seu discípulo obediente. Não darei opinião que possa influenciar o desfecho final e verificarei todos os factos dos quais haja dúvidas.

– Passemos a apresentar os jurados. Deste lado temos cinco representantes da Guilda de Magos, sendo um dos elos diretos ao réu, cada um agindo por sua responsabilidade. – Apontou com uma mão para a sua direita onde cinco homens, cada um coberto com uma capa e capuz de cor diferente, estavam prostrados. As suas caras encobriam-se no negrume do capuz, impedindo de ver qualquer pormenor. Uma corda de cânhamo atada a um mecanismo no centro do teto era segurada por cada um dos membros daquela guilda.

– A meio foram escolhidos, de forma aleatória, dez cidadãos que representam a cidade, cada um age também por sua responsabilidade. – A mão do juiz passou da direita para o centro onde uma mistura de pessoas se juntava, desde mercadores a ferreiros e nobres. Novamente, cada um segurava uma corda igual à dos magos, alguns, como os nobres, menos contentes por segurarem tal objeto mundano.

– Por fim, temos cinco outros membros deste jurado, ligados ao outro extremo do réu e afetados de alguma maneira pelo crime cometido. Também eles agem por sua própria responsabilidade. – A mão direita do juiz baixou e, num ato elaborado, levantou a mão oposta para a esquerda, onde quatro adultos, de trajes esfarrapados e arranhões onde a pele era visível, acompanhavam uma rapariga nos seus doze anos, num estado bastante semelhante ao dos adultos. Cinco cordas iguais às outras quinze estavam a ser seguradas por cada um deles.

As vinte cordas, cada uma segura por um dos jurados, subiam para o teto, onde se fundiam a um mecanismo que segurava uma lâmina de metro e meio de comprimento. O seu brilho prateado parecia sussurrar a sede de sangue que sentia. Da armação onde a lâmina se encontrava, duas traves de madeira desciam até encontrarem as placas onde em breve caberia o pescoço do réu.

– Agora que o jurado foi apresentado, que comece o julgamento! – O martelo de madeira desceu uma vez mais, batendo na placa – Que entre o réu!

Duas portas laterais abriram-se, deixando passar dois guerreiros vestindo as suas armaduras e cotas de malha. Nos ombros e no elmo estavam incrustadas pedras preciosas, com vários símbolos desenhados em círculos concêntricos.

Cada um segurava no braço de um homem. No início dos seus trinta anos de vida, aparentava estar no início dos vinte. O cabelo ruivo não tinha mais do que cinco centímetros de comprimento, desarrumado, como se tivesse sido acordado a meio da noite para responder a uma emergência. Em contraste, a sua barba e sobrancelhas eram negras, sugerindo que utilizava tintas para pintar ou o cabelo ou os pelos faciais.

O corpo estava coberto por uma das capas com capuz, idêntica às cinco figuras que representavam a Guilda dos Magos. A dele era vermelha, do mesmo tom que o cabelo. Duas pulseiras de metal prendiam-lhe as mãos e, tal como as armaduras dos guardas, cobriam-se de símbolos. Uma pedra incrustada no centro dos símbolos brilhava, como se prendesse um fogo dentro de si.

Julium Sagn continuou o seu discurso, enquanto o réu era depositado de joelhos no centro da sala, junto à guilhotina que o esperava. – Apresento-vos, para aqueles que não o conhecem, o mago Vander Sentralm, tem trinta e dois anos, foi considerado apto como um Mago há apenas um ano e meio, mas foi já responsável por vários feitos, como a queda da Guilda dos Assassinos e a criação dos golems que povoam a nossa cidade e que nos ajudam a defendê-la.

O mago levantou a sua cabeça na direção dos jurados e assentiu num cumprimento sério. Depois, virou-se para o homem das vestes negras que falava agora na sua direção.

– Vander, estás aqui como um réu, acusado de negligência pela protecção da cidade e consequente morte de vários cidadãos. No entanto o crime pelo qual vais ser julgado será o homicídio direto de Malku Frit, pai de Sela Frit – O olhar do réu desviou-se para trás do homem, focando-se na rapariga de doze anos que segurava a sua corda com as duas mãos, a qual transbordava ódio pelo mago e tristeza pelo seu pai morto. – E também do seu filho Csan Frit, de apenas quatro anos.

Um novo assentir veio do mago, sem qualquer emoção a transparecer no seu rosto. Quando Julium percebeu que o réu tinha assimilado tudo, virou-se para a plateia uma vez mais. – Agora que estão todos presentes, podemos dar início ao julgamento. Primeiro explicar-vos-ei o vosso papel como jurados.

– No topo do teto está o instrumento da justiça: a guilhotina. O seu mecanismo é operado pelas vinte cordas que seguram nas vossas mãos. Sempre que algum de vós largar a corda, o interior da máquina interpretará como a decisão de um dos jurados de que o réu é considerado culpado. Se a maioria concordar com essa decisão, que neste julgamento serão então num total de onze membros, o mecanismo será acionado e a lâmina cairá, causando assim a morte do réu. Caso não considerem o réu culpado, poderão atar a corda aos ganchos à vossa frente que, ao sentirem a pressão da corda, retrair-se-ão, impedindo assim a corda de se soltar. Após soltarem a corda ou prenderem-na no gancho, não poderão voltar atrás na decisão, pelo que vos aconselho a tomarem uma decisão pensada.

O presidente do julgamento recuou até à sua cadeira, sentando-se e batendo com o martelo na tábua, soando o já familiar som oco. – Vander Sentralm, terás agora oportunidade para explanar tudo o que aconteceu no passado dia 19, inclusive o porquê das tuas ações. Peço aos jurados que não o interrompam, pois, a seguir, poderão colocar quaisquer questões que tenham. Vander, assim que quiseres, poderás começar.

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