– E este foi o meu relato dos acontecimentos, caro juiz Julium. Culpado de salvar a cidade de milhares de mortes. – Vander baixou a cabeça e o tronco numa vénia teatral.

– Não é esse o teu crime, Vander Semtralm. Estás aqui presente para ser julgado pelas mortes de Malku Frit e Csan Frit. Alguém tem questões a colocar, antes de prosseguirmos para o veredicto?

Uma mão ergueu-se da varanda central. O juiz assentiu com a cabeça para que pudesse falar. Um homem levantou-se, segurando ainda a corda atada ao mecanismo.

– A minha pergunta é simples, porque não usou a vida dos próprios magos para alimentar o feitiço? – A voz pertencia a um ferreiro, identificável não só pela constituição do corpo mas também pelo símbolo bordado ao peito.

– A minha resposta também é simples: sem magos para controlar a quantidade de magia, o feitiço teria sido impossível, quanto maior o feitiço, maior o potencial ou o número de magos precisos para o controlar. Daí serem precisos todos os Magos Mestres para realizar um feitiço de Salto. Além disso, a vida dos meus magos pouco alimentaria o fluxo de magia, quanto mais nova uma pessoa, maior o potencial de vida e de magia que tem. – A sua voz diminuiu um pouco de tom, deixando o pesar ser escutado. – Como relatei, a vida de Malku não chegaria para quebrar o exterior do Antigo, foi preciso toda a vida de uma criança de quatro anos para fazê-lo.

O homem sentou-se, satisfeito com a resposta. Julium, olhando para os jurados, voltou a perguntar: – Existe mais alguma pergunta a fazer? – Face ao silêncio que recebeu, prosseguiu. – Então, mago Vander, podes colocar o teu pescoço na guilhotina.

Os guardas agarraram os braços do mago e levaram-no até ao bloco de madeira onde Vander colocou a cabeça. Era feito para ser desconfortável, mas para dar a vista de toda a plateia, para que o réu pudesse assistir ao desfecho, corda por corda.

– Terão trinta minutos para tomar a vossa decisão. Podem a qualquer momento largar a corda ou atá-la aos mecanismos apropriados. Caso a decisão de todos não esteja tomada ao final desse período de tempo, então as cordas que restam serão consideradas atadas e, portanto, votos a favor da inocência do réu.  Que o único Deus conduza as vossas decisões com a maior sensatez e justiça. – O juiz sentou-se na mesma cadeira onde começara o julgamento. A seu lado estava agora não um martelo de madeira, mas sim uma ampulheta. Virou-a e os grãos de areia negros começaram a cair.

De imediato várias cordas soltaram-se e seguiram diretas para o mecanismo. Vander olhou à sua volta, tarefa dificultada pela madeira que circundava o pescoço. Do lado esquerdo, na plateia dos afetados pelo seu crime, só duas cordas ainda se mantinham seguras, as da mulher e da filha de Malku Frit. As outras três pessoas, familiares do lado de Malku, tinham largado as cordas sem pensar duas vezes.

– Nada que não esperasse já. – sussurrou para si mesmo. Seguiu o percurso com os seus olhos até à plateia central e viu apenas uma corda solta. Surpreso, tentou perceber quem era. Uma mulher com o uniforme branco da Guilda da Saúde era a única que não segurava a corda.

– Todas as vidas são sagradas, mago Vander. Não há razão válida para tirar a vida de um ser humano, muito menos de uma criança inocente. – A justificação vinha de uma voz ríspida que combinava com os lábios finos e olhos semicerrados num gesto de poder.

– Nem que para isso, todos os outros tenham de morrer… – Vander sabia a inutilidade de tentar convencer um membro daquela guilda de que fizera o melhor para a cidade. E, de qualquer das formas, a decisão da mulher já fora tomada, não havia nada que pudesse fazer.

Por fim, focou-se na plateia onde os seus mestres estavam. O choque congelou-lhe o coração por uma batida quando viu que um deles tinha soltado a sua corda. Fora o mesmo mago que quisera impedi-lo de falar no seu depoimento.

– Mago Mestre Sulaz…

– Tornaste-te demasiado insolente! Enrodilhado nas tuas conquistas, pensaste que conseguirias escapar dum julgamento com o agradecimento do povo. Não posso permitir que esta rebeldia continue. Só alastraria a loucura dos teus pensamentos para os outros magos.

– Ele fez o possível, Sulaz. – o Mago Mestre do lado oposto falou. – Ele conseguiu salvar parte dos nossos magos e os cidadãos, a guilda não sofreu mais do que uns abanões graças a ele!

– Sem falar do conhecimento que trouxe para nós, agora sabemos que é possível derrotar um Antigo. – Enquanto o terceiro Mago Mestre falava, o quarto assentia em concordância. – Fomos nós que pedimos que ele lutasse, ele cumpriu as ordens e deve ser compensado por isso. – As suas palavras foram acompanhadas pelos gestos de colocar a sua corda no mecanismo da parede. O gancho recolheu para dentro do cimento, segurando a corda.

Os outros três magos fizeram o mesmo, assegurando quatro votos a favor da inocência de Vander contra os cinco a favor da sua culpabilidade.

– Claro que os magos se protegem uns aos outros. O que somos nós, para além do povo ignorante que serve como gado? – Um dos nobres aproximou-se do estrado, só o seu emblema o identificava como pertencente a umas das três maiores Casas da cidade, as suas roupas eram idênticas às dos trabalhadores que o rodeavam. – Os magos sempre se julgaram superiores a nós! – As pessoas assentiram em concordância com as suas palavras. – Vamos ensinar-lhes que ninguém escapa à justiça, o povo tem o poder de decidir aqui!

O resto da nobreza presente na sala riu-se, silenciando o homem.

– Tão sonhador que és, Edmund, sempre em defesa do povo. Os magos não fizeram mais do que o suposto para o que nós lhes pagamos.

– Nós protegemos esta cidade desde sempre! A nossa guilda é das mais poderosas do país! – Agora era um dos Magos Mestres que falava.

A altercação de palavras continuou. Vander tentou olhar para trás, para observar quanto tempo teria.

“Continuem a discutir, gastem o tempo que vos resta…” Pensou. Era impossível, a guilhotina estava feita para que o réu não conseguisse perceber o tempo que restaria para ser salvo.

– Ele merece morrer pelo que fez! – O primeiro nobre realçou as suas palavras ao largar a sua corda, três jurados seguiram as suas ações e largaram também as suas.

– Não passas de um jovem imberbe que nada sabe de política e de como governar! – O segundo nobre falou, enquanto atava a sua corda ao mecanismo – Não passas de um líder temporário, que o povo admira apenas por tu os protegeres. Depressa serás esquecido quando encontrarem o novo Vander. Mas nós estaremos aqui sempre a governar. – Lançou olhares para os nobres à sua retaguarda. Como ovelhas a seguir o rebanho, dois outros membros da nobreza menor e um membro da guilda do comércio ataram as suas cordas.

– Vou morrer – apercebeu-se Vander – Só falta aquele ferreiro, a mulher e a filha de Malku. Nenhum deles votará por mim. – O desespero assomou-se sobre si pela primeira vez – Deus, nada fiz por mal, foi tudo em prol da salvação desta cidade.

– Vander… – A voz da mulher de Malku sobressaiu na troca de ferroadas que se passava na outra plateia. O mago olhou na sua direção e reparou que toda a sala se silenciara. – Porque fizeste isto? Malku adorava-te, idolatrava-te até, eras o salvador da cidade para ele. Porque é que traíste assim a sua confiança?

– Eu não traí Malku – disse. – Quanto muito mantive a sua confiança. Foi ele que me pediu para tirar a sua vida. Ele fê-lo para que vocês se salvassem.

– E o meu filho, também te pediu o mesmo?! – A voz da mulher aumentou, e as lágrimas percorriam já o seu caminho pela cara. – Primeiro mataste Malku à sua frente e depois mataste o nosso filho sem qualquer piedade!

– Sim, matei-o sem qualquer permissão, e por isso devo ser julgado. Mas salvei todas as outras pessoas da cidade. A vida do teu filho salvou-as.

– Achas que isso me importa? A vida dos outros face à do meu filho? Se a vida deles não fosse o suficiente, irias de seguida roubar a minha, ou a da minha filha? – Com a mão livre abraçou a rapariga, assustada com o tom e as lágrimas da mãe. Olhou para a moça e viu o medo espelhado nos olhos dela. Pigarreou antes de continuar. – A minha decisão já estava tomada há muito. Tens de pagar pelos teus crimes, Vander. – E largou a corda.

Dez cordas estavam soltas. Metade daquela sala julgava-o culpado pelo que fizera. A sua salvação dependia agora da filha de quem matara e de um ferreiro. Bastava mais uma corda e a lâmina cairia.

– Quanto tempo falta? – Questionou-se.

A resposta não veio, invés disso, o ferreiro aproximou-se da beira do estrado e prendeu a sua corda.

– O que fizeste não foi correto, mas não tinhas outra alternativa segundo o que dizes. Às vezes temos de lidar com as ferramentas que temos e não pedir por outras melhores.

– Obrigado por compreenderes. Estou grato por isso.

– Não estejas ainda, a tua vida está agora nas mãos de quem magoaste mais. – Olhou para a pequena rapariga.

Todos os olhos se voltaram para ela, a pressão da expectativa a aumentar na sala. Os minutos passaram-se sem que uma palavra fosse dita. Vander não sabia se a sua imaginação estava a pregar-lhe uma partida quando ouvia o som da areia a cair, interminável. A certa altura uma lágrima rolou dos olhos da rapariga, que depressa usou as costas da mão para limpá-la.

– Tu mataste-os…

– Sim. – O mago não sabia se a rapariga lhe fizera uma pergunta ou uma afirmação. – Sei o quanto te magoei, pequena, desculpa-me. Espero que um dia entendas.

Os soluços que a rapariga tentava suprimir estavam agora mais fortes, abanando-lhe o corpo. Duas outras lágrimas rolaram do rosto dela para serem enxutas pela mesma mão.

– Mas tu e o meu pai eram amigos!

–  E continuamos a ser. Ele estará nos campos do paraíso, feliz por te ter salvo a ti e à tua mãe.

A rapariga já não tentava esconder as lágrimas que agora rolavam pelo rosto abaixo. As suas palavras tornavam-se difíceis de entender quando intercaladas com soluços.

– Espero que eles estejam bem…. Porque não os protegeste a eles também?

– Eu tentei proteger toda a gente. Protegi-vos a vocês, porque não faria o mesmo por eles? – Para Vander, os grãos de areia que caiam já não importavam. Sabia que fizera o que devia, quer resultasse ou não.

Entre soluços, a filha de Malku largou a corda. Vander só teve oportunidade de vê-la a sair da sua mão pequena, antes de tudo escurecer. A lâmina, sedenta do sangue prometido, caíra e separara a cabeça do corpo do mago, terminando assim com a vida de Vander Sentralm.

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