Os dias foram passando sem notícia alguma do paradeiro de Padi. Por duas semanas consecutivas, as sessões com Lucin e Lazif tinham sido canceladas. A preocupação de Lauren aumentava cada vez mais.

E não estava preocupada apenas com Padi. Desde que o homem desaparecera sem deixar rasto que Lauren ficara cada vez mais assustada com tudo. Pensara que era apenas nervosismo da primeira vez que ocorrera, mas agora estava cada vez mais certa de ser real.

Após a emoção do seu primeiro Susto ter passado, Lauren começou a sentir-se mais apreensiva perto de humanos compatíveis com leopardos-das-neves e com martas. Não se sentia confortável perto de pessoas assim. Julgara que fosse algo normal, que acontecia a todos os que sofriam o primeiro Susto, um efeito de serem predadores naturais do panda-vermelho. Estava constantemente tensa nesses encontros, os seus pensamentos a controlarem-na para que não fugisse para lado nenhum. Mas, semanas depois essa apreensão passara para todo o resto da população. E não era apreensão pelo lado animal das pessoas, mas sim pelo seu lado humano.

Homens-cão, mulheres-rato, homens-pardal, qualquer que fosse o animal compatível, Lauren sentia um nervosismo por estar ao pé de mais pessoas. Só quando subia a árvores e se mantinha no topo das copas é que se acalmava. Era o que fazia agora, isolada do resto do mundo. Até em casa os seus pais começaram a tomar formas mais distorcidas daquilo que eram.

E, depois da apreensão vieram as visões e o medo. Tinham piorado quando soubera do desaparecimento de Padi, como se a notícia despoletasse uma nova cascata de reações. Agora não via mais pessoas felizes e compatíveis com animais numa cidade funcional e oleada onde tudo funcionava como uma máquina perfeita, mas sim seres humanos distorcidos, monstros criados com ciência. O lado animal deles trazia à tona instintos que estavam presos nos humanos desde tempos imemoriais. Via como eles queriam caçá-la, matá-la, roubar-lhe o pêlo, não importava se eram hamsters ou corvos como Lazif, era o instinto humano.

– O que vou fazer aqui? – Era a pergunta que se fazia vezes sem conta nos últimos dias. Lembrara-se como Padi parecia constantemente nervoso e assustadiço nas sessões. O seu plano era ter falado a sós com ele, perguntar-lhe se era isso que ele sentia e como é que ele conseguia lidar com o sempre presente medo, mas ele desaparecera sem qualquer aviso e ninguém sabia para onde. Lucin tinha sido a última pessoa a falar com ele, e por isso culpava-se pelo sucedido, tendo ficado em casa desde aí.

O sol punha-se no horizonte, horas depois de Lauren ter subido à árvore.

– Tenho de voltar para casa… ­– Não queria, mas sabia que os pais ficariam preocupados.

Mal abriu a porta de casa, a mãe apressou-se a falar com ela.

– Lauren! Finalmente chegaste, por onde estiveste? – Não esperou realmente por uma resposta, pois logo de seguida continuou. – A tua carta dos administradores chegou!

Lauren só ouviu a última frase da mãe, tentava abstrair-se da sua presença para não se afastar dela com medo.

– Os administradores?

– Sim, enviaram a carta com a data de quando vêm cá para te informarem do teu novo emprego! Lauren, o que se passa?

Lauren empalideceu dum momento para o outro.

– Nada mãe, estou no quarto, se precisares de mim. – E subiu as escadas, ouvindo ainda a mãe a dizer:

– Deixei a carta na tua secretária!

Fechou a porta do quarto assim que entrou, e quase correu para a carta. O envelope prateado, com a insígnia da População Natural no centro, brilhava, chamando-a. Era dos administradores, como a mãe dissera, viriam dentro de cinco dias para informá-la do seu futuro emprego e fazer uma visita guiada ao que seria a sua futura casa e onde trabalharia.

– Eles vão perceber que eu não estou bem. Tenho de resolver-me antes de eles chegarem. – As suas mãos tremiam, amachucando o papel. Lembrou-se então da sessão após o seu primeiro mês de mudança, onde Padi parecia estar com os mesmos sintomas que ela e falara com Lazif. Padi não estava alcançável, mas Lazif estaria. Decidiu-se a falar com o homem-corvo na manhã seguinte, ele saberia o que ela poderia fazer.

– Lazif, será que tem algum tempo disponível? Queria falar a sós consigo. – Acordara e viera logo para ali, quase fugindo dos pais que queriam congratulá-la por já ter recebido a carta.

– Claro que sim Lauren, senta-te. – Apontou a cadeira à frente da dele – O que te chateia?

– Lembra-se da sessão que tivemos no meu primeiro mês de mudança, quando falámos do primeiro Susto? – Ao assentir de Lazif, Lauren continou, as suas mãos remexiam no pelo da cauda ao seu colo – Como vos contei depois, nesse dia tive o meu primeiro Susto, mas consegui superá-lo… achava eu.

– Como assim?

– Bem, eu superei, consegui ficar no mesmo lugar e não render aos instintos animais, mas… o meu medo continua presente. Agora não só de leopardos-das-neves, mas também de martas.

Lazif remexeu-se na cadeira quando ela referiu que ainda tinha medo presente.

– É normal ter um medo ligeiro dos predadores naturais, Lauren, não te preocupes em demasia com isso, quanto mais pensas nisso, pior será.

– E humanos, Lazir? – A memória de Lauren voltou ao dia exacto em que ouvira as mesmas palavras a saírem da boca de Padi. Naquele dia não reparara, mas os olhos de Lazif brilharam com algo mais do que curiosidade pelo que ela dizia, parecia agora que a estudavam mais afincadamente.

O homem-corvo levantou-se, acompanhado por Lauren que se assustara e pensara que ele iria atacá-la.

– Isso vai passar, Lauren. Vai para casa e descansa. – Lazif ia a pousar a asa no ombro da rapariga, mas esta desviou-se e dirigiu-se até à porta.

– Sim, talvez seja melhor. – Não importava para onde ia, Lauren desejava acima de tudo estar longe daquele homem. Fez um esforço para sair devagar da sala e não a correr.

Quando deu por si, andava o mais depressa que conseguia, chocando por vezes com pessoas pelo caminho. No entanto, não foi para casa, como Lazif aconselhara, mas sim para as mesmas árvores onde fora nos últimos dias.

– Algo está mal. Padi tinha o mesmo problema que eu, tenho a certeza! – As palavras do homem-panda-vermelho e de Lazif tinham sido as mesmas que a recente troca entre ela e Lazif. – Padi pode nem ter fugido, mas sim desaparecido, com a ajuda dos administradores, por estar com medo de humanos. – Lembrou-se do olhar de Lazif quando lhe dissera que estava com medo de humanos. – E eu entreguei-me ao mesmo destino. O que é que faço, o que é que faço? – Os nós dos dedos das suas mãos estavam brancos da força com que agarravam a sua cauda.

A resposta apareceu enquanto revistava todas as memórias das sessões onde Padi estava. A informação que lhe faltava e que poderia ajudá-la a saber o que fazer era as últimas palavras que Padi tinha dito a Lucin.

Lucin conhecia-o muito antes de Lauren, ela era o humano-panda-vermelho mais velho da cidade.

– Ela pode ter passado pelo mesmo. Ela sabe qualquer coisa… – Cada pensamento levava-a à conclusão de que Lucin saberia como curá-la daquele medo. Não importava que Lucin também fosse humana, o seu lado animal era o mesmo que o dela, havia um reconhecimento natural entre elas. Lucin não quereria matar alguém com a mesma compatibilidade que ela, muito menos agora que só restavam as duas.

Não esperou mais e desceu a árvore. O sol brilhava laranja a pouca distância do horizonte. Ainda se lembrava da morada de Lucin, da multitude de vezes que a mulher a convidara a jantar em sua casa. Quando lá chegou já o sol se pusera e a noite reinava.

– Padi estaria agora a trabalhar se ainda cá estivesse. – Olhou para o topo dos edifícios à sua volta. Via várias sombras de pessoas que pertenciam à polícia de vigilância. Mas, do ponto de vista de Lauren, pareciam sombras deformadas. Com um arrepio que lhe percorreu a espinha, Lauren caminhou até à porta de Lucin e bateu.

Nada. Bateu mais uma vez. Desta vez ouviu passos dentro de casa e depois alguém a abrir a porta. Quem abriu não foi Lucin mas sim um ser com oito olhos, que piscavam ao mesmo tempo com um ar de interrogação.

Lauren resistiu para não gritar de medo. Só quando superou esse instinto é que conseguiu perceber que, diante de si, estava o marido de Lucin.

– B-boa noite…

– Boa noite, conhecemo-nos? – Lauren conseguia ver duas presas laterais, escondidas dentro da boca do homem.

– N-n-não… Mas eu conheço a sua mulher, Lucin, posso falar com ela?

O homem virou a cabeça para trás, como que escutando alguma coisa. Quando não veio mais do que o silêncio, virou as costas nuas a Lauren para fechar a porta. Tinha uma faixa vermelha pela coluna, semelhante à de Lauren, mas não de pêlo.

– Desculpa, podemos falar aqui fora? Não quero acordar as crianças. Queres entregar um recado a Lucin? Podes dizer-me e amanhã digo-lhe. Ela já está a dormir, tem de acordar cedo para ir trabalhar.

– Não, não é um recado, eu precisava de falar com ela sobre… uns problemas.

O homem olhou para ela, avaliando se estaria a falar a sério ou se estaria a pregar-lhe uma partida.

– Passa por cá ao almoço, as crianças estarão na escola e poderás falar descansada com Lucin.

– Muito obrigada!

– Não tens de quê, rapariga. – Virou-se para a porta, mas antes de entrar disse: – E vê se descansas, estás num estado lastimável.

Lauren foi para casa e escondeu-se no quarto, sem dizer nada aos seus pais. Não conseguiu descansar. O sono não apareceu e passou a noite acordada, sempre atenta ao mínimo ruído que pudesse informá-la que alguém tinha chegado para levá-la. Mas ninguém veio.

O sol nasceu, contudo as horas dessa manhã pareciam não passar. Antes dos pais se levantarem, já a rapariga estava fora de casa, a ir para as mesmas árvores onde tinha passado os últimos dias. Lá esperou até o céu estar perto do pico da sua subida.

Ainda teve de esperar por Lucin à porta da sua casa. Olhava para todos os lados, vigiando cada pessoa que passava na rua.

– Lauren? O que é que te aconteceu? – Lucin aparecera na esquina e vira o estado da rapariga. As roupas amachucadas, o cabelo enrolado e nada tratado, tal como o pêlo da sua cauda. – O Reub disse que estavas num desalinho, mas não esperava isto… Anda, entra. – Empurrou-a gentilmente para dentro de casa assim que abriu a porta. Conduziu-a até os sofás. – Fica aí, vou trazer-te um cházinho de folha de bambu. – E saiu da divisão, deixando Lauren entregue aos seus pensamentos.

Ela olhou em volta, tentando abstrair-se. Via apenas uma sala simples, atafulhada de brinquedos num canto e nas paredes de molduras que guardavam memórias de tempos idos entre Lucin, o seu marido, Reub, e as crianças.

Antes que desse por isso, Lucin apareceu com uma chávena de um líquido fumegante e cheiroso. O estômago de Lauren rugiu ao sentir o cheiro de bambu, um dos alimentos dos pandas-vermelhos.

– Oh, tens fome? Posso trazer-te qualquer coisa, venho já. – E saiu sem esperar uma resposta. Só quando a rapariga ouvira o próprio estômago reclamar é que percebera que não comia nada desde que falara com Lazif. – Aqui tens umas bolachinhas… Então, Reub disse que querias falar comigo sobre algo, o que se passa? Porque é que não esperaste pelas sessões?

Lauren pegou numa das bolachas e deu pequenas trincas antes de dizer.

 – É sobre Padi…

A expressão facial de Lucin mudou de preocupação para tristeza e o seu corpo pareceu abater sob um enorme peso.

– Eu sei que ainda sofres pelo seu desaparecimento, mas preciso de saber porque é que ele foi falar contigo antes de fugir.

– Porque queres saber, Lauren? – A voz da mulher já não transportava a habitual felicidade, agora a monotonia controlava-a.

A rapariga ficou calada, a olhar para o seu chá de onde pequenos laivos de vapor saíam.

– Acho que estou como o Padi.

– Como assim, estás como o Padi?

– Humanos, Lucin. Tenho medo de humanos. – Pronto, dissera-o. Para o bem ou para o mal, havia mais uma pessoa a sabê-lo.

– Não, não, não pode ser… – Lucin balbuciava as palavras para si, olhando ora para Lauren, ora para as suas mãos – Tens a certeza?

– Não sei o que se passa Lucin, mas esta sociedade tem algo de errado. Eu vejo no olhar das outras pessoas, quase todas têm aquela ânsia de matar. Não aguento este terror constante. Padi estava a ver o mesmo, eu lembro-me do estado dele, ele andava cada vez mais nervoso e ansioso pelo que acontecia à sua volta, não olhava ninguém nos olhos. – Pensou antes de prosseguir. – Lembro-me dele falar com Lazif e ele dizer-lhe para não se preocupar. Ele disse-me o mesmo ontem.

– Falaste com Lazif?

– Sim, estava com medo de tudo à minha volta. Ele é com quem deveria falar quando precisasse de ajuda. Mas ele disse-me as exactas palavras que disse a Padi. Eles fizeram-lhe alguma coisa, não fizeram?

– Não, Lauren! – O tom chocado dela assustou a rapariga – Padi fugiu, ele disse-me que ia fugir.

– Disse? E para onde foi? O que é que ele te disse mais?

– Ele já andava a planear a sua fuga há meses. Desde que começou a temer humanos que entrou numa espiral destrutiva. Só pensava em fugir para um sítio onde ninguém o apanharia, não fazia mais nada. Foi ele que me contou do medo natural que os pandas-vermelhos têm de humanos. Ele também falava sobre essas teorias conspiradoras que tu falas Lauren. Dizia que não era o primeiro a sentir aquilo e que muitos outros já tinham fugido ou desaparecido.

– Dizia? Então ele sabia mais alguma coisa! O que é que ele te disse Lucin?

– Disse para fugir com ele. Que mais tarde ou mais cedo iria cair na mesma espiral de medo que ele e acabaria por perceber o terror da nossa sociedade.

– E porque não fugiste?

– Fugir do quê, Lauren? – As vozes elevavam-se cada vez mais, a mulher estava agora à beira das lágrimas – Não há nada para fugir! Eu sou feliz aqui, não tenho medo de humanos. Posso sentir desconforto com leopardos-das-neves, mas mais nada do que isso. Vocês estão doentes, precisas de ir a um hospital, eles receitam-te aqueles calmantes do primeiro Susto, vais ver que vai ficar tudo melhor. – A esperança da mulher pousava agora nas mais ínfimas hipóteses.

– Não! Eu não estou doente, Lucin! Não vês que estamos certos? Não somos os primeiros a pensar isto. – Agarrou as mãos da mulher com as suas – Por favor, Lucin, diz-me: para onde é que Padi disse que foi?

Os olhos de Lucin estavam cheios de lágrimas, desviou o seu olhar do de Lauren antes de dizer: – Para as florestas temperadas, o habitat dos pandas-vermelhos.

– Mas isso demora semanas a chegar!

– Ele tinha tudo planeado, um carro, férias marcadas, mantimentos. Logo depois da última sessão onde ele apareceu, foi aí que ele me pediu pela última vez para agarrar em Reub e nas crianças e ir. Ele fugiu logo depois de eu dizer que não.

– Então ele já foi há um mês? Preciso de ir ter com ele.

– Sim, foi há mais ou menos isso… – Hesitou antes de continuar. – Não sei se devia dizer-te isto, mas, se vais fugir, tem cuidado. Na última vez que o vi, ele dizia que os administradores já sabiam dele. Que Lazif estava a vigiá-lo.

O coração de Lauren caiu-lhe aos pés. Lazif estava mesmo envolvido naquilo.

– E eu alertei-o do meu estado. – Lauren começou a recuar, tropeçando no sofá onde estava sentada. – E-eu preciso de ir, Lucin. Eles vão apanhar-me. – Olhou em volta, confusa. – Desculpa-me.

Saiu a correr da casa da mulher, ouvindo ainda um último pedido para que não fosse embora, porém não ligou. Em vez disso, foi para casa. Tinha de preparar o que pudesse para fugir dali.

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