Assentou a pá de madeira na moleirinha do primeiro, fazendo-o tombar. Aquele corpo era todo ele força e pouca graciosidade. As mãos e os braços doíam-lhe de empunhar como arma a ferramenta de trabalho.
Duas vizinhas haviam encurralado um dos castelhanos que balbuciava coisas sem sentido, enquanto empunhava a sua espada. Enfiou a pá na cara dele, antes que a espada caísse sobre a mais nova. Era o último nos campos de baixo.
As mãos ensanguentadas espremiam o punho da pá, respirava com sofreguidão, e procurava assimilar o que fizera durante todo o dia. Encarnara na padeira assassina. Naquela que ficaria na História durante séculos e para quê? Só repetira o pouco que se recordava daquela história. Era hábito mudar as vidas daqueles que o seu espírito tomava, nunca mudar a História, nem revivê-la.
Pousou a pá tingida de sangue, mas recusando-se a largar o cabo, enquanto os braços tremiam de exaustão e a cabeça andava à roda com tudo o que fizera. Matar. Nunca havia morto nada maior que uma barata. Olhá-los nos olhos enquanto a luz se apagava no fundo dos olhos e as retinas focam o além. Vê-los ir em agonia, provocada pelas suas mãos… Imagens que não sabia onde encaixar.
– Brites? Mulher? – uma das outras chamou. Uma mão agarrou-lhe o braço e ela reergueu a pá, olhando em volta. – Onde estão eles?
– Não há mais nenhum. Estão todos ali – a outra asseverou, apontando na direcção da pilha de corpos amontoados.
Os troncos empilhados, braços e pernas caídas em ângulos estranhos, os olhos fixos no além… Deixou a pá cair na terra e correu para trás dum casebre de pedra. Dobrou-se e não foi capaz de conter o vómito. Despejou as entranhas, mais bílis do que algo sólido, com uma mão amparada nas pedras angulares da pequena casa. Permaneceu curvada, uma mão na parede e outra nas saias, respirando com dificuldade, vendo o sangue que escurecera o tecido castanho.
Ao alerta de invasores castelhanos e da batalha a decorrer, o instinto pedira luta. Possuída pelo espírito verdadeiro de Brites agarrou na pá, reuniu as mulheres das redondezas, e enfrentou todos os inimigos que havia encontrado no caminho. Era aquilo que viera transformar? Falhara? Cumprira o que estava inscrito na História?
Largou a parede e cambaleou até ao caminho de terra batida.
– Brites? Onde vais? – uma das mulheres gritou.
– Para casa.
– O pão pode esperar – alguém gritou, risos femininos ecoando nos seus ouvidos.
Esgueirou-se para dentro de casa. Não estava sozinha. Ela sabia que a história não acabava ali. A História ditara uma batalha final que tinha de vencer sem ajuda… ou perdê-la e arrancar a Padeira de Aljubarrota das lendas futuras. Era capaz de assassinar alguém a sangue frio? Era essa a lição daquele corpo?