Agora aquele corpo fazia sentido. As mãos enormes, os braços musculados… Não fosse o perímetro do peito, diria que era um homem entroncado. Mas não. Era uma padeira a viver em Portugal, nos arrabaldes de… algures. Uma mulher que vivia do trabalho braçal, casada com um lavrador. Pelo vislumbre daquela madrugada, a vida era dura… muito dura, pensou enquanto acarretava outra saca de farinha para cima da bancada.

O fogo crepitava, a primeira fornada estava quase pronta. Como sabia? Não o sabia ao certo. Deitara-se a adivinhar o processo de fazer pão, a confiar nas memórias físicas daquele corpo que ocupava e recorrendo às memórias de infância. Limpou a testa com o antebraço, amaldiçoando mais uma viagem não programada e indesejada. Suspirou. Uma viagem de cada vez. Uma vivência de cada vez e tudo voltaria ao normal… em breve. Só tinha de deixar que o corpo comandasse as tarefas banais às quais estava habituado. Só tinha de confiar nos instintos.

Amassou a matéria-prima da próxima fornada. Em breve saberia porque estava ali. Era assim que funcionava. Entretanto, tinha de dar uso à figura corpulenta que era agora. Os fornos estavam entalados num barracão por trás da barraca onde vivia. O glamour das profissões do povo já não era a mesma coisa, contemplou, enquanto enfiava os punhos na mistura que mais parecia cola, puxando e enrolando, esticando e envolvendo.

Teriam passado duas horas? Não sabia ao certo. E, não aparecera ninguém que a ajudasse a desvendar quem era suposto ser, ou porque tinha sido enviada para ali.

Recordava outras viagens, e incertezas, quando ouviu as rodas a calcar o caminho de terra à porta de casa. Esfregou as mãos no avental quando ouviu uma voz feminina gritar:

– Ó da casa!

As duas mulheres envergavam vestidos tão escuros e sujos como o seu, carregando uma braçada de sacas de serapilheira vazias. Os cabelos presos em coques, os rostos redondos e vermelhos, sobressaindo da tez queimada daqueles que enfrentam o sol na labuta diária.

– Adormecestes, Brites? – a mais velha perguntou, pousando as sacas numa bancada vazia.

– Não.

Brites. O nome daquela padeira corpulenta cujo corpo ocupava era Brites.

A mulher colou os olhos enrugados nos dois fornos que crepitavam. O pão! Voltou a limpar as mãos no avental e agarrou uma das compridas pás de madeira encostadas ao canto, enfiando-a na boca do primeiro forno, puxou as bolas de dentro da sua barriga a ferver. Sentia as pingas de suor a escorrerem pelas frontes e a caírem na camisa. Pousou a carga na bancada e repetiu o movimento até todas as bolas de centeio estarem empilhadas. A rapariga mais nova, cujas feições anunciavam o parentesco com a outra, apressou-se a enfiá-las nas sacas. Encheu três, enquanto ela voltava a tender a massa em bolas e pô-las a cozer.

– Os castelhanos estão nos campos de cima. – a mais velha comentou, de olhos postos nela.

– Os castelhanos? – murmurou, procurando localizar o nome Brites algures na História de Portugal.

– As tropas castelhanas? O sol cozinhou-te a moleirinha, mulher?

Castelhanos, tropas, arrabaldes de uma vila a meio de Portugal… Alcobaça, seria?! ela encarnara numa padeira corpulenta… Brites… A padeira de Aljubarrota! Concluiu, largando a massa com um sobressalto. Ocupara o corpo da Padeira de Aljubarrota?! Soltou uma gargalhada sob os olhares estupefactos das duas mulheres. Encarnara na Padeira de Aljubarrota.

migalhas de ontem