O que era aquilo? Uma pá? Para que lhe servia uma pá? Largou o comprido bocado de madeira que caiu no soalho com uma vibração seca. Passou as mãos uma pela outra, sacudindo um fino pó branco que esvoaçou pelo ar. Farinha? Aquilo era farinha? Cheirou os dedos… Sim, farinha.

Inspirou fundo, sentindo os minúsculos grãos de pó subirem pelas narinas e rasparem a garganta. Inalou de novo, outra vez, e saiu tudo num espirro, limpando o pó colado nas vias respiratórias. O som ecoou pela casa e, quando abriu os olhos, os contornos da mobília tremiam, desfocando sob o seu olhar mareado de lágrimas. Apertou as pálpebras. Voltou a abri-las. Continuava a tremer, desfocando e desmontando-se, desfazendo-se em múltiplos contornos insubstanciais, para depois se reagruparem noutras formas.

O soalho de madeira envernizada desaparecera, substituído por um chão de grosseiras lajes de pedra. O aparador em carvalho, por um caixote de tábuas enegrecidas. A luz do sol raiando pela janela transformando-se em noite profunda. As persianas chinesas convertendo-se em trapos brancos que deixavam ver as traves em cruz da pequena janela.

– Outra vez não! – murmurou, tapando os olhos com as palmas das mãos.

– Mulher? O comer?

Viu-o passar pela ombreira de pedra, botas em couro castanho, camisola grossa de lã escura e calças que pouco mais eram que trapos. Uma barba densa tapava-lhe as feições, o cabelo castanho-escuro crescia revolto, unindo-se aos pêlos faciais. Em dois passos chegou à mesa de tábuas corridas, assentando o traseiro num pequeno banco de madeira, que rangeu ao aceitar o peso.

Onde tinha aterrado desta vez? Em Portugal, era certo. Mas em que tempo? Em que circunstâncias? Olhou para baixo. Um esgaçado avental de pano-cru assentava na cintura sobre uma saia rodada que a cobria da cintura aos pés. O que mais pareciam uns chinelos pretos espreitavam por baixo da roda da saia. Uma blusa em tom pardo cobria uma larga figura. Conteve-se para não tocar nos próprios seios, aquelas duas coisas enormes penduradas onde ainda se lembrava de conseguir ver os pés sem ter de se inclinar para a frente.

Olhou em volta e viu o que devia passar por cozinha. O fogo ardia onde uma panela preta fumegava por cima. Os pratos, copos e outras vasilhas em terracota assentavam numa prateleira em madeira grossa na mesma parede. Chegou-se ao canto, forçando o passo a assumir a determinação de quem sabe onde está e para onde vai.

– Já acordaste, mulher? Desceu-te o sangue? – a voz grossa atirou, enquanto cortava um pedaço de pão com uma espécie de faca desdobrável.

– O sangue? – repetiu, olhando-o de relance e vendo-o levar à boca um bocado de pão com queijo que chegaria para alimentar uma família de quatro.

Os olhos negros desceram da sua cara, colando-se no avental. Sentiu o calor subir ao rosto.

– Grande besta! – não conteve, voltando-se para a panela que fervia sobre a lareira. Estava lixada! Era grande e gorda, mas não tinha hipóteses contra a fúria do lavrador sentado à mesa.

Um estrondo fê-la saltar dos sapatos. Olhou-o de relance. Um punho pousado na mesa e a barba deixava ver meia dúzia de dentes tortos e amarelados. Não muito certa se ele gargalhava ou estava a ter um ataque cardíaco, voltou ao tacho e serviu duas malgas do fumegante estufado de… qualquer coisa. Pedaços de couve e carne boiavam no líquido castanho-escuro. Mas era tudo castanho naquele tempo? Pousou-as na mesa e sentou-se no outro banco, desviando-se o mais possível do homem do outro lado da mesa. Ele virou a malga para dentro da boca, o líquido escorrendo pelos cantos, ensopando a barba, pingando a roupa e o chão. Pousou-a na mesa, limpou os lábios com a manga da camisola e enfiou a ponta da faca na malga, agarrando um osso carnudo com a outra mão. Roeu a carne com barulhos que fizeram o seu estômago revirar enquanto ele acabava de sorver o líquido da tijela de barro. Enfiou mais um bocado de pão na boca e cortou o dobro, e mais uma porção de queijo, enfiando-os na sacola pousada no chão. Ergueu-se, levando o saco preso no punho.

– Onde vais? – perguntou, notando a noite cerrada lá fora.

– Trabalhar! Estás lerda mulher? As vacas não esperam e os terrenos não se semeiam sozinhos – rosnou, enfiando um gibão pelos ombros e abrindo a porta de madeira, acrescentando. – Vai para o forno.

– Forno?

– Estás estúpida, mulher? O forno, sim. A vila precisa de pão. – saiu batendo com a porta. E ela ouviu-o rosnar alguma coisa como “a saca de farinha e o forno já te lembram… padeira sem pão”.

migalhas de ontem