A solução era esperar, e ter fé que o último teste do dia geraria a informação que necessitavam. Brava e industriosa mente humana. Sem o engenho, há muito que estaria morto… ou tão louco como os outros.

Dezenas de pequenos frascos de sangue balouçavam nos suportes de plástico ao ritmo do bip- bip. Miguel olhava-os, sem os ver, de mente embalada pela cadência sonora e pensamento longe dali. Um bip prolongado fê-lo inspirar fundo. Aproximou-se do ecrã. Mais uns minutos…

O relógio na parede marcava nove da noite e não havia alterações. Horas de sair dali, de deixar o laboratório e voltar ao Interface e à realidade. Era óptimo se pudesse comer qualquer coisa antes de regressar mas não havia tempo a perder. Ilusões não nutriam o corpo. A cada dia, a viagem de volta era mais demorada e penosa, agravada por uma falha na frame, que estava a dar o que fazer aos génios da biotecnologia informática.

Um novo bip prolongado e o ecrã piscou ‘Análise concluída’. Nada de anormal nos resultados dos testes sanguíneos… Outra vez. Nenhuma esperança de cura. Passou a mão pelo escalpe e bramiu “Merda!”

Tempo de regressar. Atravessou o laboratório em passos largos, deixando para trás a parafernália de computadores e equipamentos de teste, e sentou-se na cadeira de pele, em frente ao seu agente de viagens pessoal. Programou a interface com a ligação à frame, inseriu o código de chamada à realidade e acomodou-se. Fechou os olhos ao sentir o pulsar dos primeiros puxões eléctricos, numa transição gradual que impedia o cérebro de ser cozinhado em papa.

Sentiu o couro macio evaporar-se e a realidade da cadeira de rodas a espetar a carne das ancas. Abriu as pálpebras na penumbra que cobria a sua casa, uma divisão atravessada por suportes embutidos, computadores e algum espaço para circulação da cadeira de rodas. Antes, viviam em apartamentos e vivendas, subiam escadas, cuidavam dos jardins, amontoavam mobília e bric-à-brac. Agora, uma divisão espartana servia todas as necessidades básicas. Afastou os habituais pensamentos melancólicos e aceitou as dores que sucediam o retorno ao cativeiro das máquinas infernais.

Um pequeno ecrã trabalhava sem cessar, mostrando o sistema de suporte vital, em constante monitorização. Ligado e a funcionar controlando os tubos no esófago, na barriga, o espetado pela virilha acima e o intravenoso no braço. Evacuação de detritos, comida e uns extras, todos operacionais e em conexão constante com aquele pedaço de metal, empoleirado em duas rodas, que pouco servia em termos de mobilidade.

O computador emitiu um pré-programado “Bem-vindo a casa”, enchendo a divisão de luz e som, enquanto projectava no plasma de parede um par que rodopiava ao som do tango.

Miguel apreciou, com um prazer especial, a dormência habitual que picava todas as terminações nervosas. Quanto tempo até não sentir nada abaixo da cintura? Quanto tempo, até deixar de ser lixo em decomposição? Sem a cura, pouco mais eram que carne apodrecida em estase permanente. Presos às aberrações de metal, em total dependência do sistema que os mantinha a funcionar, mas longe de vivos.

Acedeu ao ficheiro com os resultados dos testes do dia. Lamentar-se não traria a cura. Dedicação e trabalho, mesmo o desenvolvido fora da frame, iria fazê-lo. Os gráficos animaram-se com o input de nova informação, mostrando todas as inflexões dos componentes sanguíneos. A música do dispositivo de comunicação sobrepôs-se ao ritmo que embalava o casal dançante, despertando-o da melancolia pós-transição.

– Mike? Não ias sair mais cedo? – a voz da Sónia irrompeu pelas colunas, a sua face redonda invadiu um cantinho do plasma de parede.

– Era o plano. Distraí-me.

– Porquê? Encontraste?

– Não comeces.

– Desculpa. Diz-me, como foi o teu dia, querido?

– Outra vez nas novelas. – Miguel declarou com um rolar de olhos.

– Na falta de calor humano, restam as novelas. Sabes que não me importava de ir à caça de homem por aí.

– Que sentimental! – murmurou, de sorriso matreiro nos lábios.

– Pára! Eu preciso de outras coisas. Isto é…

– Eu sei. – ele concordou, perdendo o sorriso enquanto os olhos castanhos de Sónia se desviavam do monitor.

– Tens novidades? – Sónia continuou, ao fim de uns momentos.

– Ainda não. Hoje não te ligaste?

– Sim, mas saí mais cedo. Não aguento mais aquele monte de restaurantes. Até a comida da cantina já parece boa!

– Uma afronta à dieta! – ele retorquiu, com uma gargalhada.

– Monumental! Avisas-me se descobrires alguma coisa?

– Sim. Serás a primeira a saber.

– Obrigada, Mike – murmurou, cortando a ligação e desaparecendo do ecrã.

Miguel voltou ao ficheiro de resultados. Estavam todos naquela situação de merda mas as circunstâncias da metade feminina da população doía-lhe com algum fervor. A recém-descoberta esterilidade de Sónia cortara-a fundo. Mesmo o sexo não sendo uma coisa praticável, já que a maioria não se movia o suficiente para a actividade, ver as hipóteses de conceber desaparecerem por completo era um golpe fatal.

Os últimos fetos femininos que a raça produzira nasciam estéreis. Sem aparelho reprodutor, já chegavam ao mundo adaptados, livres das hormonas que eram a praga das mulheres, como Sónia. Em breve, também os homens seriam todos estéreis, tal como ele próprio. Entravam na fase final em que já nem a reprodução assistida tinha material com que trabalhar.

Estase, até o último deles esgotar o seu tempo. As máquinas, carcereiras de todo o corpo humano, eram a última tentativa em conter a degenerescência do corpo humano.

Ordenou a mente a repensar na experimentação de hipóteses e variantes. Ter pena de si mesmo, ou de Sónia, não resolvia nada mas, pelos vistos, aquele teste também não.

O clique do aparelho de alimentação trouxe-o de volta à realidade… A papa acinzentada subia devagar pelo tubo transparente, trepidava e ardia ao entrar no corpo, assentando no estômago como uma pequena bomba nuclear. As saudades que sentia do sabor duma boa costeleta de novilho. Mas a realidade virtual da frame não satisfazia todos os desejos, encobria uns, adensava outros.

Puxou o último ficheiro de identificação do genoma humano e reclinou a cadeira para trás. Deixou a mente vaguear pelos filamentos que ilustravam a composição, fixando as curvas que ilustravam a sequência de DNA. Ali estava o presentinho do sedentarismo. A tríade: comida da treta, nenhum exercício físico e a mutação genética que se espalhara de forma viral.

Se tivessem mudado de vida, talvez a degenerescência tivesse sido contida… Se tivessem descoberto o gene defeituoso antes das mutações terem início… Se não o tivessem tentado modificar mas… Um formigueiro na nuca fê-lo endireitar-se de novo. Talvez estivessem a ver aquilo mal. Talvez houvesse esperança. Talvez…

pão para a alma_Rui Alex

Imagem: Rui Alex