Um sorriso em forma de quarto crescente (crescente e não minguante, porque claramente estava a aumentar), surgiu a flutuar sobre um dos ramos da árvore que se debruçava em frente à casa da Lebre de Março. Um dos olhos apareceu muito devagarinho e piscou, enquanto observava a mesa já posta para o chá das seis. Porque ali eram sempre seis horas. O que queria dizer que, enquanto ali estivesse, teria de limpar o pêlo. Ou talvez não, já que não fora ele que ofendera o Tempo. Ainda assim, lambeu uma pata que apareceu do nada, sem deixar de sorrir. O olho solitário continuava a observar a mesa. Mesmo à sua beira, uma cartola jazia abandonada.

Sem aviso, essa mesma cartola foi coberta por uma sombra e desapareceu de vista.

*

Os dedos do Chapeleiro tamborilaram sobre a mesa, enquanto os gémeos Tweedledum e Tweedledee se sentavam, trocando sorrisos cúmplices. Olhou o relógio de bolso com uma careta e mergulhou-o dentro de um bule, como se se tratasse de uma saqueta de chá. Quando o voltou a tirar, olhou na direcção do pequeno portão. Duas orelhas brancas surgiram por entre a vegetação e, pouco depois, um coelho ofegante parava à entrada, de mãos apoiadas nas patas traseiras.

– Estás atrasado dez minutos… – voltou a olhar o relógio e bateu com ele na toalha de mesa suja. – E quatro meses!

O coelho abriu muito os olhos, horrorizado.

– Impossível… – agarrou no seu próprio relógio com ambas as patas. – O meu relógio não diz isso.

– E desde quando é que o teu relógio fala? – perguntou a Lebre de Março, sentada ao lado do Chapeleiro, apontando a colher do açúcar na direcção do pobre Coelho Branco.

O coelho insuflou as bochechas felpudas.

– Não quero saber se o relógio fala ou não – volveu uma voz cortante, sobre os risinhos dos gémeos. A Rainha de Copas olhou o Chapeleiro. – Quero uma boa razão para as minhas tortas estarem aqui, ou vão rolar cabeças…

Todos se esqueceram do relógio falante de imediato e o contemplado tossicou, esperando que algum dos presentes congeminasse uma desculpa.

– Tudo para agraciar a vossa magnificente presença, minha doce rainha – disse o Rei de Copas, passando um dedo pela gola, e querendo evitar a todo o custo que a ameaça da sua esposa se concretizasse.

O Chapeleiro concordou com um aceno muito solene, contudo uma voz intrometeu-se na explicação do rei, dizendo:

“As tortas tardam a tomar o trono,

Tardam e tomam o tempo a tomar,

Que tomada a tarde tomam tanto tudo,

Tonto tolo o tresloucado que as tomará.”

A maior parte dos presentes, para sua própria segurança, fez por ignorar o que a Lagarta Azul acabara de pronunciar. No entanto, a Rainha semicerrou os olhos.

– Estás a dizer… – pensou um pouco. – Que as tortas estão envenenadas? Que todos aqui me querem matar?!

A Lagarta, pacatamente sentada à mesa a fumar do seu narguilé, limitou-se a libertar uma baforada de fumo em forma de ponto de interrogação.

Interrompendo a discussão que estava prestes a instalar-se, um leve tilintar chamou a atenção dos presentes, quando uma colher bateu no rebordo de uma xícara. Todos atentaram no belo Lírio-Tigre, plantado num vaso que fora posto sobre uma cadeira.

– Sr. Chapeleiro, para que foi requisitada a nossa presença? – perguntou a flor, educadamente.

O Chapeleiro voltou a tossicar e compôs um ar sério.

– Foram todos convocados para a hora do chá porque algo de muito grave aconteceu. – Estudou a expressão dos presentes, como se procurasse qualquer indício de culpa. – A minha cartola favorita desapareceu.

– Que horror! – exclamou a Lebre, levando uma pata à boca.

– E sabemos que foi um dos presentes – acrescentou ainda o Chapeleiro.

– E como é que sabes que não foi um dos ausentes? – perguntou Tweedledum.

– Ou um dos despresentes? – interveio Tweedledee.

– Porque houve alguém que viu tudo – declarou o Chapeleiro, empinando o nariz. – Mas não viu bem.

– E onde está o Arganaz? – quis saber a Rainha de Copas, examinando a mesa com o olhar.

– Deve estar a dormir algures dentro do açucareiro – respondeu a Lebre. – Mas preciso de outra chávena. Está na hora de mudarmos de lugar!

– Ninguém muda para lado nenhum! – exclamou o Chapeleiro, erguendo um dedo no ar. – Tal movimento destruirá as provas!

Enquanto a atenção se focava nele, uma mão sorrateira esticou-se na direcção de uma das tortas da rainha, e roubou-a da travessa. Tweedledum escondeu-a por um momento e depois enfiou-a rapidamente na boca, perante o olhar de choque do irmão gémeo que claramente também queria uma.

– Ele é o ladrão do chapéu! – acusou Tweedledee de imediato.

– Não, tu é que és! – retribuiu o outro, de boca cheia.

– Comeste a cartola! – disse o primeiro, apontando-lhe um dedo. – E ainda a estás a mastigar!

– Seu aldraboso mentirão! – Mostrou-lhe os punhos fechados, ao mesmo tempo que um perdigoto lhe saltava da boca. Apressou-se a engolir a torta. – Isto merece um duelo!

A Rainha de Copas olhou de um para o outro, o rosto ficando cada vez mais vermelho de fúria. Nenhum dos presentes se admiraria se lhe começasse a sair fumo pelos ouvidos e pelo nariz, ou sequer se a sua cabeça explodisse.

– Cortem-lhes…

– Querida, bebe um chá de camomila – ofereceu o Rei, com um sorriso trémulo, enchendo-lhe uma xícara, ou tentando. Por mais que vertesse chá, a chávena não se enchia, como se o fundo estivesse a absorver o líquido, e isso só irritou ainda mais a Rainha de Copas.

– Penso que só há uma forma de resolver este enigma! – disse a Lebre, com um aceno tão sábio que só podia ser fruto da sua loucura. – Com outro enigma: o Enigma da Cartola.

Com mais ou menos expectativa, todos eles esperaram que a Lebre ditasse o enigma. Todavia, ela não chegou sequer a abrir a boca. As palavras do enigma chegaram-lhes muito abafadas e proferidas por ninguém visível:

“Corre, corre, Cartola sem Pés,

Corre, esconde-te onde não vês

A luz e és esmagada pelo cheiro,

Oh, terrível o peso deste traseiro!

E fina a vida com a falta de ar,

Durmo o sono à sombra sem par;

Pária é quem a viu desaparecer,

De sorriso amplo e fugidio ser.

Que é quase grande o dono que a esmaga por inteiro,

Hoje durmo à sombra da Cartola do Chapeleiro.”

Entreolharam-se. A Lagarta Azul sussurrava para si as palavras do enigma, enquanto os gémeos Tweedle, já esquecidos do duelo, as escreviam num guardanapo e traçavam um perímetro em redor dos versos, constatando espantados que o Enigma da Cartola tinha a forma de uma.

– Eu acho que foram as tortas – declarou o Rei, esticando a mão para levantar a travessa.

– As tortas não têm traseiro… – retorquiu a Rainha de Copas, olhando o marido de soslaio.

Um risinho inesperado repercutiu-se no ar, como se pertencesse à brisa que agitava os ramos da árvore que os sombreava.

É quase grande o dono que a esmaga por inteiro,

A cartola ou o segundo roedor do reino,

Quem dormirá à sombra do Chapeleiro?

Todos os olhares se voltaram para o Chapeleiro Louco, ou mais precisamente para o seu traseiro. Uma fita azul saía de debaixo dele e pendia da cadeira, balançando-se ao sabor de uma pata listada sem dono, ao lado da qual flutuava um sorriso.

– Para onde é que vocês estão a olhar? – quis saber o anfitrião, desagradado.

– É melhor que te levantes, ou vais perder a cabeça. Literalmente – enfatizou a Rainha.

Depois de uma hesitação, e muito contrariado, o Chapeleiro levantou-se da cadeira. Bem esmagada, lá estava a cartola que parecia exibir movimentos respiratórios. A pata sem dono puxou a fita e a cartola tombou, revelando o Arganaz adormecido, em cima do qual o Chapeleiro também se sentara.

– Que ultraje! Saí eu do meu canteiro para isto! – disse o Lírio-Tigre, antes de se afastar da mesa, com as pétalas eriçadas.

O Rei apressou-se a puxar a Rainha de Copas, para seguirem o exemplo da flor, antes que ela decidisse começar a cortar cabeças com a faca da manteiga, e todos os restantes, até mesmo a Lebre de Março que era a melhor amiga do Chapeleiro, fizeram o mesmo, deixando-o sozinho.

– Isso, vão-se embora – resmungou ele, puxando para junto de si um bolo com velas. Bateu as palmas três vezes e os pavios acenderam-se – Mais sobra. Então vamos lá. Um… bom desaniversário p’ra mim! Um feliz…

Franziu as sobrancelhas e parou de cantar, ao ver o bolo arrastar-se até junto de dois garfos. Usou-os como pernas e correu para fora da mesa, fugindo também da hora do chá.

O Chapeleiro insuflou as bochechas e apanhou a cartola do chão.

– Isto não correu bem – declarou. Pousou a cartola noutra cadeira, certificou-se de que o Arganaz não estava lá, e voltou a sentar-se em cima dela. – É melhor recomeçar tudo. Alguém, que não eu, tem que ser o culpado.

Por último, o sorriso do Gato de Cheshire desapareceu também. Louco por louco, preferia aturar-se a si mesmo.

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“If I had a world of my own, everything would be nonsense. Nothing would be what it is, because everything would be what it isn’t. And contrary wise, what is, it wouldn’t be. And what it wouldn’t be, it would. You see?”

― Lewis Carroll, Alice’s Adventures in Wonderland & Through the Looking-Glass