“Que raios me partam…”, pensou para si, impaciente. Coçou o fecho que começava junto à nuca e lhe descia pelas costas abaixo, unindo a pele do saco de ossos que vestia.

O pé batia no chão a um ritmo acelerado, tentando destilar a irritação que o consumia até aos intestinos. Esses andavam às voltas no seu baixo-ventre, muito animados com os cheiros diferentes que pairavam no ar. Cruzou os braços sobre o peito, contrariado. Até os seus malditos intestinos estavam felizes com a sua desgraça! Onde é que já se vira? Há dezenas de anos que não saía do cemitério e agora ali estava ele, sentado num banco de jardim, lado a lado com a sua melhor pá de aço inoxidável com banho de prata. E ainda diziam que no Carnaval ninguém levava a mal… pois a sua pessoa levava muito a mal Ele ter-lhe posto aquela tarefa em mãos. Se dita cuja já fizera a folha a cinquenta humanos, porque não enviara alguém específico para lhe tratar da saúde mais cedo? O seu dever nunca fora tratar de assassinos em série, sempre trabalhara com os lerdos dos mortos-vivos.

Há muito que a tarde conquistara a manhã. A atmosfera que pairava em seu redor era festiva, alegre. As gargalhadas e a música pairavam, vindas de não muito longe, deixando-o algo espiritualmente nauseado. Palermices para as quais não tinha paciência. Pontapeou um montículo de neve que se formara à sua beira. Os flocos desciam dos céus de vez em quando, na paz do Senhor, como se fossem outra bênção. Tolhiam-lhe a pele de frio e deixavam-lhe os ossos perros, o que era tudo o que precisava… ou não.

Rezingou para si próprio e lançou uma mirada a um casal dentro de dois fatos brancos, lembrando robôs, que passou por si. Olharam-no de alto-a-baixo e desviaram o olhar, como se não o tivessem visto. Era o que dava trabalhar no cemitério, todos pensavam que era um mau augúrio ambulante de jardineiras sujas de terra. A sua indumentária nem por disfarce carnavalesco passava.

– Senhor Jacinto!

Sobressaltou-se e voltou rapidamente o olhar para o que surgira bem ao seu lado, enquanto se perdia em pensamentos. Era uma coisa pequena, com um chapéu pontiagudo no topo da cabeça, que trazia ao ombro um gato preto de olhos brilhantes, vivinho da silva. Aproximara-se dele, sem que desse conta, os passos encobertos pela camada fina de neve. As pegadas estavam lá, pequenas como só poderiam ser os pés de uma pirralha.

– Olá, criança – resmungou por entre os dentes. A miúda não lhe era estranha, já a vira no cemitério uma vez ou outra, e não fora a rezar pelos mortos. Recolhera plantas que cresciam junto das campas, recitara conjuros e esconjuros, falara sozinha, dançara de forma estranha. Ouvira ainda dizer que, num dia de Halloween, entrara-lhe pelo cemitério adentro, enquanto ele estivera ocupado noutras lides (às cacetadas a mortos-vivos), e a partir daí lançara um feitiço que transformara a maior parte dos humanos da cidade em sapos.

– O senhor está com um ar triste. É Carnaval, não devia estar assim – disse a pequena bruxa. Levou as mãos aos bolsos do vestido de lã roxa e tirou de lá várias bolinhas cobertas de papéis coloridos e brilhantes. – Os seus ratinhos iam adorar estes chocolates, o que acha?

Do ombro da pequena, o gato fitou a barriga do homem, com um interesse mal disfarçado. Jacinto não lhe respondeu. Era normal que a bruxinha soubesse que não era um coveiro vulgar, tal como ela também não era uma criança normal.

– Obrigado. Eles são gulosos, vão gostar – disse, com um sorriso meio torto, que bem podia confundir-se com um esgar enjoado.

A pequena sorriu-lhe, feliz consigo mesma. Deu uma volta sobre si, fazendo a saia rodar, e executou uma vénia, arrebatando o chapéu da cabeça e revelando um sapo lá escondido. O batráquio agarrou-se em desespero aos caracóis castanhos da menina para não cair ao chão.

– Oh, desculpa, Arquimedes – pediu a bruxinha, muito depressa. Endireitou-se e, compondo-o no cocuruto da cabeça, voltou a escondê-lo sob o chapéu negro.

Sem esperar por mais, saltou para o banco, sentando-se ao lado do coveiro.

– O que faz aqui? – perguntou, curiosa. Pousou o gato no colo e fez-lhe uma festa terna. O gato manhoso que não parava de lhe mirar a barriga…

O coveiro rangeu os dentes.

– Espero – respondeu. Levou uma mão aos chocolates e desembrulhou cinco deles, os quais engoliu sem sequer mastigar. Os seus intestinos rejubilaram, dando voltas e brincando com os doces.

– Espera por quem? – Ela balançou as pernas, cujos pés não chegavam a tocar o chão.

– Por ela.

– Quem?

Ela.

A pequena fez um aceno de compreensão, muito séria.

– Porquê?

O senhor Jacinto inspirou fundo. Não que respirasse realmente, mas aquele reflexo de vivo angariava muita paciência.

– Porque Ele mandou.

– Oh, Ele… porquê?

– Porque mandou…

– Ah, és uma pá mandada – concluiu a pequena, num tom de pequeno triunfo pela piada.

Aquilo fora a gota de água.

– Ouve lá, piolho, tu…

Uma mãe, que passeava com os dois filhos pela mão, lançou-lhes uma mirada de soslaio, desconfiada. Os dois petizes, que arrastavam atrás de si múltiplas serpentinas, observaram a roupa de Emma, julgando o seu disfarce carnavalesco em comparação com os deles: um cowboy e um palhaço. No momento seguinte, a expressão da senhora alarmou-se, os olhos arregalando-se, como se visse algo terrível por detrás do banco de jardim onde Jacinto e a menina se sentavam. Largou a mão de um dos filhos e levou-a de súbito ao peito, apertando a zona sobre o coração. Esta reacção durou apenas um segundo. Logo a seguir o corpo relaxou e o olhar serenou, até perder o brilho inato, tornando-se vazio. O corpo tombou no chão, morto.

As duas crianças, que pouco mais tinham do que quatro anos, olharam a mãe, aparvalhadas.

– Ela chegou – comentou a pequena, dando um salto do banco e correndo para a senhora caída.

Jacinto levou a mão à pá e ergueu-se. Estreitou os olhos e olhou em volta, até detectar um vulto negro, armado, numa zona menos iluminada, entre as árvores.

– Pois chegou – murmurou para si.

Parte I