Tudo tinha um fim. Sozinha, Maria observava os últimos raios de luz. Fixava a linha que anunciava o passar do sol para o outro lado, de olhos pregados nos tons rosados com que o horizonte se acobertava.

Fechou o punho sobre a frente do casaco branco de lã, apertando-o contra o peito. Esperava, sentada num dos bancos de ripas de madeira, no caminho relvado que rodeava a enorme casa. Entorpecida pelo frio, e pelo que fizera, desejava o fim de mais um dia… de todos eles.

– Mamuska? Vamos para dentro? – soava a voz doce da senhora, que parecia segui-la para todo o lado.

Maria manteve o olhar fixo no horizonte, apertando um pouco mais o protector de lã contra si.

– Vem, querida. Está a ficar frio. – repetiu, enfiando a mão por baixo do braço de Maria incentivando-a a levantar-se com um toque delicado.

– Uns minutos mais… – murmurou Maria, fazendo deslizar o braço da mão que a tocava.

– Está bem, Mamuska. Já te venho buscar.

A mulher de rugas vincadas, cabelos grisalhos e olhos claros deitou um último olhar sobre o horizonte e afastou-se. O uniforme de calças e camisa azul-claro contrastava com a relva verdejante e o castanho das enormes árvores espalhadas pela propriedade.

O céu escureceu, restando uma pequena faixa rosada que acompanhava a linha da terra e, só nesse momento, é que Maria retirou os olhos do horizonte e procurou a mulher que se afastava.

Com uma inspiração profunda, levantou-se, libertando o punhado de lã com o tremor de um arrepio. Os olhos recaíram sobre as ripas de madeira, que haviam sido pintadas com uma espessa camada de tinta verde escura, e sobre um pequeno borrão branco que jazia tombado. Deitou a mão aos pedaços de tecido cosidos a pontos escuros e largos. Entre os seus dedos, uma desengonçada boneca feita de retalhos brancos não se sustinha direita com o pouco enchimento. Endireitou-a, reparando nos pequenos quadrados brancos unidos a linha escura, nos cabelos compridos feitos de lã cinzenta, nos dois pontos que formavam os olhos e na ausência de uma boca que formasse qualquer expressão. Estudou-a por uns instantes, enfiando-a no bolso do casaco quando a voz meiga da senhora a arrancava da espera e do sítio onde terminava todos os seus dias.

Maria sentou-se à beira da cama, puxou a boneca do bolso, depositando-a ao seu lado. A colcha de malha, em vários tons de azul-escuro, era o contraste perfeito para a brancura do pequeno corpo de trapos. Olhou-a por largos momentos. Afagou-lhe os fios de lã que jorravam do topo da cabeça de pano. Combinavam com o louro acinzentado dos seus cabelos. Tocava no pequeno corpo e os ossos dos seus dedos formavam protuberâncias pontiagudas, como pequenos sacos esvaziados de carne, o rosa pálido das unhas cortadas rente. Toda ela de uma palidez acinzentada, encardida, oposta à brancura da boneca abandonada.

Apertou as pálpebras sentindo uma lágrima percorrer-lhe a bochecha. O brinquedo de criança trazendo memórias, relembrando os passeios de menina pelas bancas da feira onde, agarrada às saias de sua mãe, chorava por uma boneca de trapos. Uma daquelas alinhadas em cima do pano da pequena banca de feira.

Durante toda a meninice desejara uma boneca de pano. Com vestidos feitos de retalhos, largos sorrisos pintados e longos cabelos de lã de todas as cores. Desejara-as tanto que todos os anos, ao voltar à feira, derramava lágrimas por aquilo que não podia ter.

A venda de trapos, que havia sido a vida da sua mãe, nunca produzia os cinco tostões a mais que pagassem o objecto do seu desejo. E assim, todos os anos ficava ali, de olhos muito abertos, bebendo todas as cores e contornos das pequenas meninas feitas de tecido.

Passou um dedo pelos pespontos negros que uniam os quadrados de algodão branco.

– O que tens aí, Mamuska? – perguntou a senhora de cabelo grisalho, enquanto retirava as almofadas castanhas da cabeceira, ajeitando-as sobre a cadeira de madeira ao lado da janela.

– Nada. – murmurou Maria, continuando a afagar a boneca.

– Vamos dormir, vá. – instigou, puxando a ponta da colcha de malha para que Maria se deitasse.

Maria deslizou o corpo sob as mantas, levando a boneca de trapos consigo. Aceitou o minúsculo copo transparente, tombando o conteúdo, e empurrou os comprimidos com a água. Pousou a cabeça na almofada enquanto ela lhe aconchegava o cobertor.

– Deixe acesa. – Maria pediu, ao vê-la debruçar-se sobre a mesa-de-cabeceira em busca do interruptor, preso no fio do antigo candeeiro de loiça.

– Só por um bocado, Mamuska. Sim?

Ela acenou com a cabeça, sem levantar os olhos dos pontos negros que formavam os olhos da boneca, enquanto a senhora saía do quarto. Com o indicador afagou a cabeça de trapo. O risco do nariz era uma simples linha desenhada. A face de pano não tinha boca, apenas a ausência da expressão feliz, que as bonecas que povoavam as suas memórias de infância haviam tido. Para lá da porta entreaberta do quarto, os barulhos aquietavam-se, os passos morriam com o fechar de portas, as conversas sussurradas abatiam perante o descanso da noite.

– Porque me olhas assim? – um murmúrio assustado, numa voz de criança, soou.

Sentou-se na cama e, de olhos muito abertos, procurou pelo quarto. Fitou a nesga da porta entreaberta e as sombras perto da janela. Estava sozinha. Os seus olhos azuis recaíram na pequena boneca de trapos.

– Pára de olhar para mim. – a voz de menina sussurrou.

Com um sobressalto, Maria abriu a mão, o corpo de trapos caindo desengonçado sobre a manta azul. Aquilo que não tinha boca falava.

trapos vivos