O líquido saía ao ritmo da pulsação cardíaca. Nico era um contentor que se esvaziava a cada pulsar. Sem escolha. Alice não lhe deixara outra alternativa. Olhava, absorto, para o sangue que escorria dos pulsos. Não soubera bem como fazer e aquilo ardia-lhe como tudo mas, não conseguia passar mais uma noite ali… à espera, sem saber quando ela viria para o magoar. A gritar em silêncio pela família que não via.

A alcatifa ensopava, escurecendo a cada minuto que passava. Odiava-os a todos. Ninguém o ouvira quando gritara por socorro. Depois dessa vez, nunca mais pedira ajuda. Ninguém viria, foi o que a irmã lhe garantira. E com razão. Nunca, ninguém veio.

Tomou a decisão em desespero. O nojo que sentia de si próprio, e dela, o medo de passar mais um momento sozinho com a irmã, a vergonha que os outros soubessem, tudo o empurrara para dar uso a uma das lâminas da casa. Não se arrependia. A dor acabara… a física, pelo menos.

 

 

 

Nico abriu os olhos. A irmã balbuciava qualquer coisa no telefone, na cozinha. Fugira do corpo do pai como a cobarde que era. Aproximou-se, prostrando-se na sua frente. Desejou, com todas as suas forças, deixá-la ali mas era impossível voltar-lhe costas. Viu-a perder a voz e deixar cair o telefone.

 

– Nico? Não pode ser. Não! – gritou, enquanto ele se aproximava a passos lentos.

 

 

 

A polícia arrombou a porta de entrada com um estrondo. Gritaram por alguém que estivesse em casa, mas não obtiveram resposta.

Encontraram-na primeiro, encostada ao móvel do lava-loiça, sentada numa poça de líquido vermelho. A faca pousada no colo, as mãos presas aos braços por osso quase despido de carne.

No quarto, o outro corpo esperava-os, com um tiro certeiro no céu-da-boca. Não havia vivalma para encontrar.

 

– Há alguém para identificar os corpos? – perguntou um dos polícias.

– Não. O resto da família está toda aqui. – Declarou uma mulher polícia, não evitando o tremor na voz.

– Toda? Como pode ser?

– O miúdo no mês passado, a mãe passadas duas semanas, depois o irmão da mãe e, agora, os últimos dois…

– Como?

– Suicídio. Todos eles tiraram a própria vida.

O silêncio invadiu o quarto.

 

Nico agachou-se ao lado da janela. Não havia mais ninguém. As lágrimas escorriam pelas faces. Ninguém mais sabia. Nunca ninguém saberia e ele continuava ali enquanto os polícias remexiam em tudo.

Porque permanecia ali? Agora, a família estava com ele, porque não os via? Fora abandonado, de novo. Ali, eles saberiam o que fizera? Pior, saberiam o que ele deixara Alice fazer? Seria por isso? Mais uma vez, eles não o queriam?

Sentiu uma mão pousar-lhe no ombro. Com um pulo, voltou o rosto. Debruçada sobre ele, Alice sorria.

actos de dor